sábado, 1 de maio de 2010

A Capa - Introdução

HISTÓRIAS

DO

BLACK TIÊ




PARA,

LILA, LUANDA, JARDEL, PABLO E BÁRBARA.



INTRODUÇÃO:

Camarás,
difícil era crer, um capoeirista, acostumado as mais diversas lapadas da vida, tinha dado um salto, e poderia ser mortal, na fina linha que separa a razão da loucura.
Quando iniciei estas histórias estava confinado. A única coisa clara, era que havia de alguma forma, transgredido certas leis básicas do convívio social. E por conta disto, estava sendo cuidadosamente tratado, com coquetéis diários de injeções, luminaletas e eletrochoques. Consideravam-me tereré do quengo, variado da bola, fofo do juízo, zoró, zoropitó, zuruó. No linguajar culto: louco.
No começo, ficava fora de órbita boa parte do tempo. Palavras zoavam ao redor sem significados, dispersas, vazias. Iam e vinham velozes pesadelos de aniquilação, por pouco não bati a caçoleta.
Naquele desmantelo, percebi, para sobreviver aquela experiência dentro do manicômio, seria melhor não exasperar-me. Naquele lugar, fingir-se de morto ou dar uma de esperto, de pouco adiantaria. Os gestos e pensamentos estavam sendo vigiados, sempre.
Senti, para regressar ao outro lado, para sair dali, para voltar a dita vida normal, seria necessário traduzir-me. Não iria ficar feito um cão vadio, perseguindo amiúde a própria cauda.
Para resumir a solução encontrada foi escrever estas histórias. E comecei assim.......


Autor: Tom Barreto

Capitulo I - Cachoeira

Tiê é nome de pássaro, avermelhado, com o abdominho um pouco mais claro. Na cabeça tem um topetinho, se alimenta de frutas do mato. Vive no litoral e não sobrevive engaiolado. Sem liberdade, emudece o seu canto, fenece sem satisfazer o desfrute de quem o aprisionou. Não sei se por acaso ou leve semelhança este foi o apelido que me deram: Tiê.
Nasci em Cachoeira, no recôncavo baiano às margens do Paraguaçu. Desde menino, franzino, fuçador e arruaceiro, no bairro chamado Alto do Cucuí.
Cachoeira, desde tempos remotos, sempre foi afamada por seus charutos, seu samba de roda, seu misterioso candomblé e seus exímios capoeiristas. Uma fina flor da natureza.
E foi assim , relembrando, ciente que a arte é o esforço humano para tornar este mundo habitável , decidi contar estas histórias.
Não será sem surpresas leitores, se usar de algumas invenções, certas malandragens literárias, para que vocês leiam este memorial até o fim. Nascido que sou deste estupendo milagre da natureza, pensei comigo: Quem sabe, algum dia, quando for flor no campo, alguém diga: - Foi-se, mas aquele negro tinha arte.
Vou viajar através do meu tempo. O tempo que voou sobre as asas do vento.

UNS GOLPES
Após um banho no rio, vinha sentindo no corpo aquela leveza das águas limpas.
Ia manemolente pelo caminho. O sol aquecia o corpo arrepiado. Ia pensando, o Gilton deveria estar rosnento com a minha ausência. Tínhamos muito o que fazer, cortar, lixar e envernizar muita madeira lá na marcenaria.
Acordei com preguiça. Também pudera, cortamos a noite, enrolando as folhas secas de arapiraca. Cabocla, queria atingir a sua cota mensal na produção dos charutos, e entrega-los prontinhos, com os capotes, nas caixinhas lacradas, lá na Charutaria Leite & Alves.
Conversa vai e vem, fomos até o fim, cortamos a noite. Dormi pouco e acordei morrinhento. Cabocla já tinha ido pra fábrica. Resolvi perambular e dar uns mergulhos.
Vinha caminhando, pensando nestas coisas, tranqüilo e eis senão quando, avisto o Caititu, o inimigo número um de todos nós. Andava ligeiro. Percebi, deslumbrava uma bela encrenca. O Caititu, bem lhe assentava este apelido, era um bicho do mato arredio e maldoso, qualquer vacilo com ele e pronto, lá vinha o golpe e lá estava a vítima com a cabeça inchada, premiada com um enorme galo, ou um olho roxo.
Com cara de boi zonzo, gostava de brigar e brigava apenas para conferir como andava a nossa valentia.
As pegadas vacilaram. Busquei um atalho, não encontrei. Disfarcei andando lentamente, aparentando tranqüilidade, como se sequer notara a sua presença ameaçadora. Fiz mais, comecei a assobiar uma música qualquer, feito quem estava sossegado e seguro de si.
Nos aproximamos. O matreiro foi parando lentamente ao meu lado. Acendendo as ventas, começou a rir mostrando seus dentes grandes e brancos. Rindo, deu um cocorote na minha cabeça. E ao me ver assustado, deu uma sonora gargalhada e falou :
- Tá molhadinho, hein neguinho. Foi nadar. Não foi ?
- Sim, respondi engasgado.
- Taí, aposto que se você for pra casa bem sujinho, Cabocla, sua mãinha, não vai gostar nadinha. Né não ?
Fiquei calado. Naquele momento senti o perigo. Deu vontade de sair em disparada, mas estava acuado. Na mente ocorriam uma saraivada de coisas. Já sentia-me ralado e enlameado, tudo por causa das suas pernadas. Veio-me o barulho da serra elétrica zunindo incomodo. Pensei no Gilton irado com o meu atraso.
O Caititu, ali, olhando-me sagaz, estudava os meus movimentos, percebi, ia levar outro croque, desta vez seria para me estontear. Esquivei-me, jogando o corpo para trás, dei-lhe uma rasteira. Quase caiu, mas lépido deu um giro ficando em pé. Fitou-me surpreso com minha ousadia, não esperava aquela reação. Ligeiro levantei-me. Seu olhar era maligno, sua boca tremia pelos cantos e riu irônico do meu atrevimento e disse:
- Hei, o neguinho tá ficando sabidinho ! Olhe, pro seu tamanho você tá bem esperto, hein....
Distraí-me com o elogio traiçoeiro, levei um golpe rápido no estômago e caí estatelado. Os raios do sol feriam as minhas retinas. Tentava enxergar o meu adversário. O Caititu pulava de alegria. Novamente tratei de levantar-me, certo que ia apanhar mais. Secou-me a garganta. Ia dar um outro golpe, mas saltei e dei-lhe um golpe pegando bem no eixo da grampola . O inimigo caiu um tombo feio. Sequer podia acreditar naquilo. Então danou-se a ranger os dentes, como um cão raivoso, tentando se recompor. Era como se de suas narinas de bezerrona, saíssem fumaças, como se de sua boca labaredas de fogo.
Desta vez meus artelhos não vacilaram. Minhas pernas tortas corriam velozes. O vento e os raios de sol, brincavam no meu rosto, e zombavam vendo-me ganhando o meio do mundo. Olhando para trás, vi o Caititu desistindo de me perseguir, esbravejava, ainda escutei ele gritando:
- Neguinho fila duma jumenta, destá, depois te pego.
Num lufa-lufa, afoito, entrei ofegante na marcenaria.
O Gilton vendo-me estabanado, perguntou assustado: -Etâ que aperreio é este ?! Tá corrido da polícia ?
Respondi: - Tou escapando do Caititu.
Calmo, contei-lhe em detalhes o confronto. Riu da minha façanha, orgulhoso de mim, mas me alertou:
- Tiê, cuidado. De manhãzinha, quando o beija-flor começa a dançar nas flores, muito carcará, lá na roça, já tá procurando bezerrinho pra comer. É melhor você não andar sozinho por aí. É perigoso.
Pensei nas palavras do Gilton o resto do dia. Desperdicei muita madeira, sonhando ser um capoeirista.

UM QUARTETO AFINADO
Léo, Gilton, Teco e Tiê. Este era o quarteto. Um quarteto mais que perfeito.
Íamos conquistar o nosso pequeno e grande mundo de Cachoeira. Não tínhamos dúvidas, este era o universo que nos interessava.
Se era dia de rio, íamos nadar. Se a noite era oportuna pra assombrações, íamos contar os nossos casos. Se a ocasião era pra pura vadiação, íamos vadiar e ponto. Se a situação era grave, carecia de umas boas pernadas, por alguma questão moral ou de hombridade, lá íamos nós, lá para o Monte ou para o Virador, bairros onde tínhamos nossos eternos rivais, sempre dispostos as boas pernadas. Saíamos todos felizes, vingados, com vários lesões e ponto.
Por nenhum jota ou nenhum til nos desgrudávamos.
Leo, morava no bairro do Rosarinho e a maior parte do seu tempo, vivia no cemitério. Ali cuidava de seus bodes e suas cabras, que pastavam tranqüilas, serenas por cima dos mortos.
Gilton, o mais velho de nós, com seus treze anos, era quase um mestre na carpintaria. Ensinava-me a arte de trabalhar a madeira bruta, tornando-a objetos de uso dos homens.
Teco, usava a inteligência, sempre em função do quarteto. Era quem dava a palavra final, encontrava saídas para nossos enrasques. No empoeirado cinema, lia as legendas para nós. Hábil e criativo, criava os nossos brinquedos. Nos protegia dos intempéries da vida.
Ensinou-me a ler, com aquela sapiência que os altruístas tem com os ignorantes.
Lá, no quadro negro da nossa infância, estava escrito: Escola = Prisão.
Tanto isto era verdade que, o nosso sábio, o Teco se entediava. Ficava aparvalhado, não tinha nenhum interesse para com o lê com lê e o crê com crê. Para não cochilar, tamborilava na carteira, num ritmo lento, pá, pum, pá pá pum, adormecia de olhos abertos. Isto irritava profundamente a professora, que despertava-o com um muxicão no quengo, para ele tomar assento de gente, e ainda era levado a dar a mão a palmatória. Aquela violência, dava um fim na mais ínfima esperança que tínhamos na escola. Ninguém tinha o direito de agredir nenhum de nós. Podiam contar, por uns dias, o quarteto não ia ficar alisando o banco da ciência, íamos gazetear, ainda mais se o mundo lá fora, exigia a nossa presença. Fatos extraordinários, estavam acontecendo por todo o recôncavo.
Para nossa alegria cotidiana, nossos heróis e vilões estavam ali mesmo.
John Wayne, na tela do nosso empoeirado cinema, ali caçando os sanguinários cawboys, com seu colt branco, com toda habilidade de sacar a arma do coldre, jamais por exemplo, acertaria sequer de raspão uma bala no nosso escorregadio Tião. Todos o temiam. Incluindo, o delegado Nastácio. De olhar frio e distante, Tião, diziam, travava longos tiroteios com seus inimigos. Diziam, tinha feito um pacto com o Pé-de-Gancho, com o corpo fechado, era imune aos tiros e armas brancas. Quando andava pelas ruas de Cachoeira, todos silenciavam. Quando entrava lá no empório Imperial, grande celeiro de jogadores de sinuca e baralho, reduto dos maiores papudinhos das redondezas, todos faziam mesuras a sua pessoa. Aquele ambiente de algazarra e gozações, ficava silencioso, dando a impressão que, estávamos derrepentemente na igreja de N.Sra do Rosário, só faltando alguém puxar um terço, pra iniciar uma novena. Tião não era de ficar arrotando farofa, apenas observava o ambiente. O Abreu dono do empório, sempre cabreiro com algum turundundum, se pelava quando via o ximite do Tião pendurado na cintura, servia-lhe rapidamente uma moqueca com pirão. Tião bebericava um quebra-goela. Antes de ir embora, dizia apenas um :- Põe na caderneta !. O Abreu arregando, com a espinhaço nas costas só pra se curvar, ainda agradecia a sua inestimável presença, dizendo para ele voltar sempre. O cabra Tião saia silencioso. Ia embora para o seu coió, andando ligeiro, com seu chapéu de aba descida. E a esbórnia voltava ao ambiente.
Bruce Lee, nadinha significava para nós, se comparado ao nego Rubião, o maior capoeira do mundo, usuário de um brinco de ouro na orelha. Não existiam, navalhas afiadas que o vencesse, em qualquer esperretetê. Nós sonhávamos com o grande embate: o nego Rubião X Bruce Lee. A luta do século. Ele seria, é claro, vencedor reconhecido como, o maior lutador de artes marciais do planeta. Aguardávamos este momento.
Para nós, ora vejam leitores, nem mesmo o genial Carlitos, era tão engraçado se comparado ao Delegado Nastácio. Um calango seco que cuidava da moral e dos bons costumes do povo Cachoeirano. Foenha e gago, tinha um tique nervoso, quando irritado, girava o pescoço, dando a volta de uma meia lua inteira. Sisudo e sempre preocupado, ele era a lei. Fechava os prostíbulos, proibia os jogos de azar, dava ordem de prisão, caso julgasse que um de nós estivesse praticando algo ilícito.
Certo dia, Nástacio, amanheceu azeitado, e num gesto de extrema ousadia, anunciou alto e em bom tom, iria acabar com aquela bacafuzada, iria fechar todos os terreiros de candomblé do recôncavo, pois aquela não era a religião oficial dos brasileiros. Isto deixou os seus subordinados pasmos, uns pensando estar o delegado com algum sério desvario.
Nástacio, reuniu seus comandados e deu a seguinte ordem:
- A lim ..limpeza vai ser ge..geral. Não vai fi ficar ne nenhum terreiro em pé. Chega de perturbações, de ce..ce..cerimônias. Chega de ba..ba..batuques. Dis...dis...distribuam po..po..porradas, po..po..ponham fo..fo..fogo em tudo. Eu assumo todas as conseqüências. Bora..bora acabar de vez com es..es.. esta va..va..vadiagem..
Disse isto tudo, como se alucinado, e ficou o dia todo traçando o mapa de todos os terreiros de Cachoeira. Planejando posições, cuidando da sua estratégia militar pirotécnica, e concluiu: quase toda a cidade ficaria em cinzas, após aquela guerra santa. Pois sim, para servir de exemplo aos demais terreiros, determinou, a tropa atacaria primeiro o Candomblé do Zambi. Terreiro muito respeitado, dirigido pela alalorixá Nina, conselheira espiritual, muito freqüentado pelo povo, pelos artistas e políticos.
Naquela noite, o som dos atabaques anunciavam a presença dos orixás. Palavras afrôs no ar. Todos dançavam e cantavam animados, quando o Nastácio pisou espingardado na porta do terreiro e com seus galos enfeitados e gritou, naquela gaguez trepidante e costumeira, quando a situação era tensa.
- Za...Za...Zambi..Va..Va..mos acabar com esta zoeira agora. Nina vou vou guarda-la na ca..ca...cadeia.
Dito isso, parou. Sentiu um mormaço na visão, o chão lhe faltava, passou ainda a mão na careca suarenta, sentiu um forte zumbido na cabeça, e vupt, caiu por terra, língua estirada, ficou assim por alguns segundos, e zapt, logo estava em pé. Ainda colocaram, nas palmas das mãos do Nastácio, um acará em chamas, pois suspeitavam que poderia estar simulando alguma possessão, nera não, sêo Delegado tinha virado mesmo cavalo-de-santo, e os alabês, tocaram seus atabaques com mais força ainda. Então de acordo com as exigências da entidade, botaram nele uma saia verde, toda rodada, um turbante vermelho em sua cabeça. E ele ficou rodando e dançando, cheio de trejeitos com as mãos, deixando transparecer seus coturnos militares. E sem gagueira alguma, fez o seguinte pedido:
- Gentes, boa noite gentes. Cadê meu abebê ? Quero meu abebê.
Trouxeram-lhe o leque prateado. Ficou aprazeirozo se abanando. Os subordinados não esbouçaram nenhum gesto de violência, muitos freqüentavam o terreiro, e ficaram ali achando graça daquilo tudo. E o Nástacio ia fazendo outros pedidos:
- Gentes boa do Zambi, traz pra mim um abará, tou com fome.
E ele estalava a língua apreciando o bolinho, dizendo, hum..hum...nem sei o que o diga, tá uma delicia !
E quando foi amanhecendo, a entidade foi embora. Nisto o Nástacio, caiu em si, deu uma topada, tão forte no batente do terreiro, que a perereca escapou-lhe da boca e voou longe, ficou com a boca murcha, e ao se ver ali com saia e turbante, saiu em desabalada carreira. Tropeçando pelas ruas, despindo-se, esbravejando com os subordinados que corriam para auxilia-lo :
- Vo..vo..vocês...assis assisti..ti..ram tu..tudo e não fi..fi..fizeram nada?!
No outro dia, as beatas Conceição, Quiteria e Corina, saíram comentando, indignadas, o Delegado agora dera pra freqüentar o terreiro de Nina, do jeito que ia indo, era bem capaz de já estar visitando a casa das quengas, e era só o que faltava pra desmoralizar de vez Cachoeira.
Por algum tempo, Nastácio andou sumido, diziam que estava de mororó. Tão logo retomou seu posto, já de boca nova, mandou para a prisão um subordinado, este sarcasticamente estava lhe chamando pelo apelido de Abaraiado. Tanto pior ficava quando um deles, por pura gozação, perguntava-lhe malicioso:
- Então sêo Delegado, qual terreiro nos vamos fechar esta noite ?
Secamente dizia:- Tou pre..preocupado com es estas bo..bo..bobagens não. Te..tenho ques...questões mais se..sérias pra re..re..resolver.
- Tá certo Delegado. Quem tem pena de angu não engorda cachorro.
Aqueles gracejos, tiveram um fim, quando o Delegado irado, transferiu um deles para Casa Nova, cidadezinha nos confins da Bahia. Acabou o gracejo, ninguém queria ir lá pra baixa da égua.
No terreiro de Nina, a perereca ficou guardada, lembrança daquela guerra santa, que afinal nunca ocorreu.
O Nastácio era para nós, um sujeito engraçado.
Embora apontássemos algumas, os cachoeiranos gostavam de nós.
Se as mulheres iam à fonte, lavar suas roupas, e ficavam naquelas tiranas, cantos dos rios sem fim, se as casas estavam vazias, invadíamos os quintais, e sorrateiramente desfrutávamos dos jenipapos, jambos, sapotis e pitangas. E para testar a apontaria dos bodoques, algum vaso de alguma varanda ia pelos ares.
As mulheres precisavam dos nossos préstimos:
- Oh, fio de Cabocla, faz um favor neguinho, vá buscar querosene pro meu fifó, lá no Imperial ?
- Como sem falta.
- Oh, fio de Cabocla mais Bizu, vá buscar um remédio, lá no Virador, meu menino tá queimando de febre.
- Daqui prali.
Gostávamos de fazer ponga no trem, passava lentamente pela ferrovia. Pendurávamos em algum vagão. E esguiamos, sentindo o vento balançando nossas surradas camisas. As pedras passavam velozes no chão, tal qual um filme de faroeste.
Íamos ao amanhecer, apreciar o vapor João das Botas, flutuando no Paraguaçu, apitando fom-fom.

VIVA SÃO JOÃO
O céu de Cachoeira, ficava todo salpicado de estrelas e balões, numa luminosidade estranhamente bela. As ruas enfeitadas com varas verdes de bambu, em forma de arcos. Nos arcos, eram amarradas as lanternas de latas. Dentro das latas, eram colocadas as velas acesas. As luzes das velas tremiam ao vento e as bandeirolas também. E o vento espalhava o cheiro da festa junina. Licores de todos os tipos, jenipapo, ameixa, amendoim, castanha de caju, este afrodisíaco, diziam. Bolo de fubá e aipim, canjica, milho cozido, pamonha e pipoca. Brincadeiras ao redor das fogueiras. São João me prometeu, me dar uma capela, ou de cravo ou de rosa ou de florzinha amarela, cantavam as meninas. No pau-de-sebo, subiam os meninos. Pipocavam busca-pés de tiro, traques e bombinhas.
O quarteto tava bem disposto naquela noite. O propósito era revirar Cachoeira. Íamos visitando nossos amigos vizinhos. Aqui e acolá, cada qual ia embicar os licores. Enfim, todos estavam chamando cachorro de cacho. A roda da vida, ia girando e girando. Todos alegres e encharcados.
O Lêo, o mais bico doce de todos, tava muito revoltado. Queira porque queria que, fossemos todos lá pro Catende, um safado, um tal de Caititu, tinha passado a mão boba na malota da irmã dele. Ah, claro que não íamos ficar desmoralizados, concordávamos todos. Da onde já se viu tamanha ousadia, mexer com a nossa taioba, naquela bunda-de-nós-todos, nosso patrimônio intocável ?!. Porém, dado o estado coletivo alterado, adiamos a esfrega para o outro dia. Isto graças aos argumentos do Teco, sempre usando o bom senso e a sua inteligência, mesmo embriagado.
O Teco deitou-se no meio da rua. Bem acomodado, como se estivesse numa rede. Ficou observando o céu, apontava para as estrelas e dizia:
- Olha lá o Cruzeiro. Tá vendo Gilton ? Olha lá Tiê. Um dia vou embora desta terra. Aqui em Cachoeira nunca serei nada. Vou pra Cidade da Bahia.
O Gilton pouco estava se importando com as lamurias do Teco. Tava com a brucuta. Brincando de bunda-canastra, plantava suas bananeiras. Levava tombos e se enlameava nos charcos, e gritava uh, uh, uh, hoje vou me acabar. E ria muito. E começamos todos a rir, rir muito. As pessoas que passavam por nós, riam também. Rimos tanto que ficamos todos mijados.
Tapava um olho, depois o outro, tentava assim fixar a visão no mundo, mas tudo girava e girava, muito velozmente. Naquela noite deu um toró, cada pingo um pote. Azuretado, sei lá como o Teco conseguiu levar-me até em casa.
Cabocla, vendo-me daquele jeito, enlameado montado na ema, e botando as tripas pra fora, soltou um berro:
- Oxalá....Deus Me Valei. Bizu, vem ver o seu filho. Era só o que me faltava nesta vida....
Recordo o Bizu olhando-me com certo espanto. Esbouçou um riso, mas Cabocla, repreendeu-o no ato.
- Não tem nada de engraçado, Bizu... Ah, Nosso Senhor do Bonfim, se o menino pega no vício....ah isto não meu Caboclo Jeremias!
E continuou falando e falando, indignada. Então a pamanha endureceu, só restou ao Bizu, tocar o manguá no Tiê.
O primeiro porre. O primeiro e único safanão .Viva S.Jõao.
Estes eram alguns dos fatos, e os personagens que coloriam o cotidiano daquele quarteto de meninos Cachoeiranos.
Um quarteto bem afinado.

UNS NEGROS
Preciso esclarecer algo. Cabocla era o apelido de dona Arcelina. Cabloca não era cabloca na acepção da palavra. Não era mestiça de branco com índio, nada disto. Nem cariboca, tão pouco curiboca, sequer tinha aquela a cor acobreada, nem os cabelos lisos, era negra. Ganhara este apelido lá no terreiro do candomblé-de-caboclo, onde recebia o Jeremias, herói das matas.
Nossa casa caiada de branco, tinha um quintal com jardim, flores e roseiras, palmeiras, ervas, gramas verdes, arvores fruteiras e uma plantação de milho.
Com seus dedos ágeis, trabalhava lá na Charutaria e deixava prontos finos charutos, exportados para a América do Norte, Europa e Ásia. Cabocla conservava sempre o bom humor, apesar dos pesares. Bem mais tarde, entendi ser aquela alegria, uma maneira de manter-se firme no objetivo, criar seus filhos, com nomes com as iniciais em lé: Lurdes, Lúcia, Lizete e Lucídio.
Bizu construía igrejas, no estilo barroco. Sobrevivia disso.
Ensinou-me a nadar no Paraguaçu. Para ele atravessar o rio, era uma lição de vida. Se o sujeito, tinha a coragem de atravessar um rio, perdera o medo, pujante, poderia conquistar outras coisas na vida.
Era fanático pelo seu glorioso Ypiranga, naqueles tempos idos, era o melhor time de futebol da Bahia, comandado pelo grande craque Popô. Jogador de toque refinado. Quando saiu a escalação do escrete nacional, que ia disputar a copa do mundo em 58, Bizu que estava atento, ficou tão indignado ao não ouvir o nome de nenhum craque do Ypiranga na relação de Feola, soltou um bombaço no rádio, explodindo três válvulas e reclamou:
- Não é possível, até quando o povo nordestino, vai agüentar tanta discriminação?! Hein,? Quem é este tal de Garrincha ?! Quem é Pelé ?!
Por conta da minha pouca habilidade com a pelota, não sabendo nem bater picadinho, tomando banho de cuia de qualquer um, não servindo nem pra ser beque-de-usina, e quando dava uma bicuda, metia a bola no fotografo, os garotos do Estrela do Botafogo, sempre me escalavam para o gol. O Bizu, quando ia assistir aos jogos, via-me vazando todas as bolas com a mão de sebo. Ficava pouco tempo no poleiro, ia embora. Entristecia-o saber, jamais o seu paco-macho, seria um craque como o Popô, ainda mais com aquelas pernas de cangalha. Fatalidades da vida.
Cabocla, era solicitada para benzimentos, para espinhela caída, para enfermos acamados, ou para livrar a dor de morte de certos defuntos frescos que inconformados, pelejavam para ficar entre os vivos. Com um pouco de reza, a alma ia para o além, calminha, refrigerada e risonha. Cabocla conhecia o poder das ervas, fazia as beberagens, mulungu, carnaúba, tatajuba, mandacaru, malva, gordido, casca da gameleira, folha de jurema preta, quina-quina, açoita-cavalo, esporão de galo, cavaco de batinga, para todos males, algumas que estancavam até hemorragias. As vezes era parteira.
Sua popularidade era tamanha, isto provocava certo ciúmes no Bizu, que ficava se remoendo, despeitado da sua pequenina negra, sempre solicitada para algum samba-de-roda, pois conhecia vários sambas antigos e dançava muito. Bizu um abacaxi.
Para Cabocla, Cachoeira deveria ter uma igreja a cada esquina. Não, não somente Cachoeira, mas Nazaré, Jaguaripe, Feira-de-Santana, Alagoinhas, Santo Amaro, Cruz das Almas, Teodoro Sampaio, Vera Cruz, todos as cidades do Recôncavo, toda a Cidade da Bahia, enfim , deveriam estar repletas de igrejas, assim Bizu teria trabalho o ano inteiro. Assim a penúria teria um fim. E daria para criar melhor os filhos, proporciona-los uma educação melhor, levá-los ao médico. Sabia, o trabalho era escasso para ele, por isto explorado e ganhava ninharias. A Charutaria preferia a barata mão-de-obra feminina. Os homens Cachoeiranos viviam naquelas libações, com seus carteados e sinucas, senão em pescarias noites a dentro. Cabocla andava bem saturada, principalmente daquele cheiro impregnado na sua pele, cheiro de fumo.
As vezes iam nos visitar, o Dito e o Vado, irmãos de Cabocla. Espalhafatosos e brincalhões nos divertiam muito. Simulavam o jogo de capoeira, cantavam uns sambas. Dito raspando o prato com uma faca, Vado, o preto-do-leite, que falava pelos cotovelos, ficava batendo duas colheres, acompanhando o ritmo, nós batíamos palmas. Lá ia Cabocla dançarina, naqueles movimentos do vai e vem, deslizando os pés descalços, sem perder o ritmo, não levantando os calcanhares. Cantávamos, quando cansávamos da pândega, íamos ouvir os casos. Histórias de nossos antepassados. Negros escravos que se acabavam na lida, como sabão na mão de lavadeira, negros libertos, gentes que viviam nos engenhos de cana-de-açúcar, outros trabalhavam nos saveiros e veleiros, outros no massapé, na limpa das plantações de fumo, outros que sentiam no lombo o relho do couro cru, ou de mulheres que com seguiam a alforria, vendendo os doces, mingaus de milho, canjica e quebra-queixo, e de outros, marinheiros que desapareciam no mar.
Historias contadas de geração para geração.
Nós ouvíamos atentos. E por vezes não saibamos o porquê de algumas lágrimas rolarem em suas faces negras.
Eis algumas........

O SABINO
Gostava de cantar lá no canavial. Assim como o Sabino, muitos negros apreciavam encher de alegria a lida dura com cantos de trabalho. Assim era naqueles tempos. Um dia, aconteceu um imprevisto com o Sabino. Quando estava enxadando, a berimbela de sua calça de algodãozinho arrebentou-se. Ele era um sujeito divertido e fez que nem se dera conta do detalhe. E enxadando, ficou naquela cantoria, sem sequer se dar ao trabalho de abaixar e levantar a calça. Os outros negros, começaram a rir. As gargalhadas, iam se espalhando pelos canaviais. Então o Sabino, resolveu dar de mamar à enxada, e girando, girando começou a dançar, balançando os bagos, virando o formiróide para os negros se divertirem mais. Alguns pararam o trabalho, pra ver as maluquices do Sabino. O feitor-de-serviço não se agradou nada daquilo. Sentiu-se provocado na sua autoridade, e na obrigação de dar uma lição naquele negro.
Então a partir daquele dia, todas as manhãs, açoitava-o com seu relho de couro cru. Ainda mais, proibiu-lhe de cantar, ameaçando-o cortar sua língua. Durante vários dias, sempre a mesma sessão de relho cru no lombo do negro.
Acontecia porém, camarás leitores, quando a noite vinha, o tal de Sabino de Angola, pegava o seu instrumento, o berimbau (um arco de madeira envergada por um cordão, e tendo uma quenga de cabaça amarrada, e ele tocava com um pedaço de pau fino), ia se ajuntar aos outros negros, bem distante da Casa-Grande.
Dançavam e gingavam naquele jogo chamado capoeira. Imitavam os movimentos dos animais. O coice da mula. O esporão do galo. As acobracias do macaco. E faziam uma roda e tocavam seus tambores, e lutavam entre eles.
As vezes, o feitor-de-serviços, ia até lá, verificar o motivo de tanta zoeira. Mas o toque do berimbau, do negro sentinela, avisava a sua indesejável presença. Quando ele chegava, o Sabino tava escondidinho na mata. E os negros apenas dançavam. E diziam que tavam com saudades da África, e ele podia ficar tranqüilo, ao amanhecer todos estariam na lida do canavial.
Camarás, o Sabino treinou muito aquela luta. Ficou expedito.
Uma manhã quando o feitor, como de costume, ia lhe dar um lapo, uma manzape, um levanta negro safado, vou lhe dar mais uma surra de relho. O Sabino não lhe pediu a benção. Pelo contrário, fez vários movimentos, de braços, de pernas. Foram tantos golpes, rápidos e violentos, e quando o feitor ia caindo mortalmente ferido, ainda pensou, o negro tá com o cão.
O Sabino, antes de fugir do Engenho Vitória, foi até o canavial. Avisou a todos , tinha um feitor a menos. Cantou e dançou junto com outros negros. Levaram as foices, as enxadas, os facões. Rasgaram a mata e sumiram.
O barão do Engenho Vitória, teve que comercializar, muitos tonéis de aguardente, muito açúcar, com os traficantes negreiros, para repor a mão-de-obra escrava fugitiva.
O Dito, o mais alode de todos nós, gostava de desembuchar esta.

O CAETANO
Desde menino sabia, as três primeiras igrejas construídas na Bahia, tinham os nomes dos navios armados do Tomé de Souza: Nossa Senhora da Ajuda, Nossa Senhora da Conceição e o Salvador.
Apreciava ver o trabalho dos mestres. As belas fachadas das igrejas, os anjinhos bochechudos, os santos que tocavam violinos, as amplas sacristias, os bancos de madeira ornamentados e esculpidos.
Uma igreja para o Caetano, tinha de ser construída com muita arte, com os espaços cuidadosamente estudos, luzes e sombras. Caetano foi se dedicando, todo o santo dia no seu ofício. No início humilde servente, depois pedreiro, e assim construindo os sobrados com sacadas. Depois, as pequenas capelas. Depois afamado, já mestre, as igrejas.
Um dia, surgiu a sua grande oportunidade. Projetar a igreja de Nossa Senhora dos Rosários. Apresentou o seu desenho, para uma comissão julgadora do clero. E daí, aprovaram o seu projeto, deram-lhe plena liberdade, sem sequer alterarem um rabisco.
Caetano mais seus homens, construíram aquela que, teria a mais bela fachada da Cidade da Bahia. Que acabou sendo conhecida como a igreja de N. Sra. Dos Rosários dos Pretos.
Bizu, com o coração perto da goela, sempre repetia esta história.

O SOUZA
Era muito hábil, ainda mais com os instrumentos de corte. Tinha uma clientela vasta, desde as iaos até o Chefe da Polícia. Era também exímio tirador de dentes, se necessário.
No início, era negro de ganho. Não apenas, pagava pontualmente a sua diária de obrigação, como ainda bem jovem, conseguiu se alforriar. Acabou montando sua própria barbearia.
Era um hábil músico. Com sua clarineta, era convidado para tocar nos saraus, dos senhores-de-engenhos, nos seus sobrados.
Discreto, poucos sabiam ser ele descendente dos negros malês, do Vale do Niger. Usava um amuleto no pescoço, dentro do amuleto tinha uma oração. Solidário, no fundo de sua barbearia, criou a associação dos negros libertos. Ali, uma vez por mês, sempre no último sábado, festejavam com muita música e dança, a libertação de alguns negros.
Souza, seguia vivendo, hábil, discreto, solidário .
Aconteceu que em mil e oitocentos e trinta e cinco, explodiu na Bahia, a revolta dos negos malês, pôs em pavorosa a população de São Salvador. O movimento foi abafado. Muitos mortos e presos, outros deportados para a África.
Alguém, não se sabe quem, acabou denunciando o Souza, que ele era muçulmi, e estava muito empenhado na libertação dos negros, e queria juntamente com outros negros, implantar a república dos negros, e além disto tudo, usava uma amuleto mundrungueiro, com orações indecifráveis no pescoço. O Souza foi preso. Queimaram a sua barbearia. Colocaram-no num navio, com destino para as Costas d’Africa, que levava um carregamento de fumo e aguardente. Deram-lhe porém um cruel castigo. Cortaram-lhe os dedos das mãos, para que nunca mais fosse habilidoso em nenhum ofício, e nunca fosse justo e solidário com ninguém, e nunca mais tocasse nenhum instrumento.
A junta de alforria criada pelo Souza, no entanto não cessou suas atividades. Daqui e dali pipocavam outras associações. E a tradição daquela festa mensal para os negros libertos continuou.
Porém em respeito ao Souza, ninguém jamais tocou uma clarineta.
O Vado, um contador de histórias nato, marejava os olhos.


Autor: Tom Barreto